terça-feira, 29 de maio de 2012

Café com leite - Entre o amargo e o doce


Ciro Oiticica*



A obra de Daniel Ribeiro é um elogio ao contato humano. Ele narra a história de dois irmãos, a criança Lucas e o jovem Danilo, e do namorado do mais velho, Marcos, quando todos se vêem forçados a mudar de planos devido à morte dos pais dos irmãos. Os namorados acabam tendo que abdicar de uma viagem e da vida a dois em um novo apartamento para que Danilo possa cuidar do irmão. Dessa adaptação, surgem novos relacionamentos entres os três personagens, mostrando que o melhor é aceitar o correr da vida.

O título é um excelente ponto de partida para análise. Expressão bem brasileira (tanto que a tradução para o inglês Me, you and him é digna de “Sessão da tarde”), café-com-leite designa algo ou alguém cuja inexperiência justifica, num jogo, não ser alcançado pelo rigor das regras. Diego fala para seu irmão mais novo que ele não é mais café-com-leite após ele passar um nível do videogame, indicando que ele está crescendo.
Mais do que essa simples referência, o filme procura mostrar que todos podemos ser café-com-leite em relação às mudanças repentinas e à imprevisibilidade da vida. Temos o privilégio de não poder controlar nosso curso, de não sermos levados a sério, de não fazer da vida um livro de regras.

O significado de Café com leite vai além, sempre tipicamente brasileiro. É da expressiva mistura do título que se constrói a narrativa. Misturas não apenas entre os personagens, mas entre essas duas substâncias, o café e o leite, que permeiam a subjetividade de qualquer pessoa: a pureza do leite como memória doce de uma infância passada, quando um leve indício de choro bastava para receber o carinho materno, e o café como o amargo do envelhecer, a obrigação de ficar desperto e independente. Ao pedir que Danilo prepare seu leite, Lucas busca o afeto, a atenção. Quando Lucas pergunta ao seu irmão o porquê de chorar, a resposta é que “não é nada, é coisa de gente velha”; é a dor que escorre por sua bochecha, são lágrimas de café. A obra de Daniel Ribeiro demonstra de que forma a mistura permite neutralizar tanto o sofrimento quanto a inexperiência levando à maturidade pela dissolução da dor no contato humano.

Entre a infantilidade e o paternalismo, os personagens se alternam, superando tanto o medo de crescer e de aceitar as mudanças, quanto o de voltar a ser criança e pedir o carinho que precisam. A inversão das situações, quando Diego procura o irmão mais novo pra dormir em sua cama e este o consola, permitindo que ele durma de tênis, é uma amostrado poder lenitivo do carinho e da companhia. Pela mudança, os sentimentos se equilibram, encontram um ponto justo. Ao transformar, repousam, diria Heráclito. As próprias questões abordadas pelos personagens, das existenciais às habituais, da saudade ao videogame, acompanham a lógica (ou o caos) do fluxo.

Café com leite é a história de três vidas reunidas em torno de uma frase. “Quando as coisas mudam, se acostumar é difícil, mas, depois de um tempo, vai”. É o tempo de as coisas se ajustarem, encontrarem a mescla certa. O tempo em que o derrame de café ainda invade a alvura do leite, que a vida perturba nossa inocência de querer levá-la.

A abordagem do filme quanto à questão homossexual é brilhante, sem exagero. Um ditado afirma que a melhor forma de demolir um preconceito é pelo desprezo. Os temas são tratados com naturalidade. A espetacularização que se fez em torno de O segredo de Brokeback Mountain leva a pensar se o filme teria esse sucesso todo não fosse a temática gay. Da mesma forma, as novelas ao mostrar casais totalmente púdicos, sem espontaneidade, incomodam profundamente, parecem reforçar a intolerância. Café com leite em nenhum momento se aproveita da condição do casal ou o hiperboliza. O anseio hiper-real de defesa, a encenação afetada ou espetacular acaba por justificar e fortalecer o preconceito. Os opostos se legitimam. Eliminando um, é provável que o outro desapareça. Por isso interrompo minha defesa: não irei mais trair o ditado.

Foi um deleite assistir a um filme tão doce, doçura que a lembrança do batente, às seis da manhã do dia seguinte (regado com muito café pra ficar esperto), reenquadrou na realidade. Mas nem isso desanima, já que a felicidade nada mais é que a complacência da solidão (e vice-versa).

Texto originalmente publicado em CriticaCurta Cinema 

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