segunda-feira, 30 de abril de 2012

"Juventude", um filme brasileiríssimo


Simples e despojado, longa de Domingos de Oliveira dribla problemas técnicos com diálogos deliciosos e um compêndio fascinante de ricas experiências de vida

Por: Rodrigo Carreiro


De um ponto de vista exclusivamente formalista, fazer um filme cuja ação dramática consiste em uma noite de bebedeira e conversas na vida de três senhores entrando na faixa etária dos 70 anos parece um convite para um dos programas cinematográficos mais chatos que se pode imaginar. No território da sétima arte, contudo, as certezas vivem sendo continuamente derrubadas e pisoteadas sem cerimônia. “Juventude” (Brasil, 2008), do veterano diretor Domingos de Oliveira, comprova a máxima mais uma vez. Este é um filme sobre memórias e afetos. Um filme encharcado de experiência humana verdadeira, que celebra a vida. Em resumo, um filme cheio de tesão.

Não é preciso ser grande conhecedor de cinema para perceber a influência de Woody Allen no tipo de filme predileto do diretor brasileiro: cenas que consistem de longos diálogos, drama e humor mesclados indistintamente, em que personagens masculinos gabam-se de conquistas impressionantes e desfilam um rosário de inseguranças sexuais. Oliveira é o primeiro a concordar com a semelhança. Assume-se como admirador incondicional do norte-americano e afirma que a inspiração para “Juventude” veio dele mesmo. Nem por isso o longa-metragem, todo filmado em digital e por isso feito com orçamento mínimo, perde um milímetro de sua força. Pela simplicidade, pela despretensão e pela força dramática, afirma-se como um dos lançamentos mais interessantes de 2008 no Brasil.

A sinopse é mínima. Toda a ação dramática acontece no espaço entre a tarde de um sábado e o nascer do sol de domingo. Nesse intervalo, três grandes amigos de infância que já passaram dos 70 anos de idade se reúnem, na casa de um deles, para se embriagar com álcool e com as memórias de uma vida inteira. David (Paulo José), o anfitrião, é um homem rico e recebe os colegas, conhecidos desde que interpretaram juntos uma peça na adolescência, na mansão onde vive, em Petrópolis (RJ). Antônio (Domingos de Oliveira), um cineasta, mora com uma garota de 20 anos, mas ainda lamenta a perda do grande amor da vida dele para um norte-americano. E Ulisses (Aderbal Freire Filho), o garanhão da turma, vive um momento singular, marcado pela relação conturbada com uma filha viciada em drogas.

Em “Juventude”, existe experiência na frente e atrás da tela. A direção de fotografia, por exemplo, foi entregue ao veteraníssimo Dib Lufti, talvez o mais lendário fotógrafo de cinema do Brasil. Os atores, por sua vez, atuam como se estivessem na cozinha de casa (vai ver estavam mesmo), com a maior naturalidade possível, cada um respeitando o espaço do outro e inventando tabelinhas de diálogos deliciosas, responsáveis por momentos vibrantes de afeto: amizade, amor, ciúmes, dor, sofrimento. A relação de risos e lágrimas que eles vivem carrega o DNA das grandes amizades, e é algo reconhecível por todos nós. As horas que o trio divide na mansão funcionam como uma cápsula do tempo, em que cada um ganha a oportunidade de fazer um balanço de sua vida – todos os erros, todos os acertos – enquanto todos percebem que o passado ainda insiste em se insinuar no presente, às vezes de maneiras insuspeitas.

“Juventude” é cinema imperfeito, do ponto de vista técnico. A mise-en-scéne despojada pode dar a impressão de desleixo com a captação das imagens. A luz é problemática, já que a textura opaca/brilhante das cores captadas pela câmera digital deixa evidente a profundidade de foco quase inexistente (algo agravado quando o filme é visto em projeção digital). Mas a verdade é que nada disso importa. A qualidade dos diálogos, a força dos personagen s e torrente de emoções que flui da tela, em fluxo contínuo, constroem uma experiência fílmica rara. O cinema precisa de mais filmes assim.

Fonte: CineReporter

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O ano em que meus pais saíram de férias



Marcelo Hessei

O ano em que meus pais saíram de férias (2006) não teria esse título se não fosse um humor de mercado. Convenceram o diretor Cao Hamburger (Castelo Rá-Tim-Bum - O Filme) de que Vida de Goleiro, o nome original, afastaria o público feminino. A mudança faz sentido, mas o anterior era melhor. Mesmo porque a metáfora futebolística aqui é preciosa.

Com doze anos de idade, Mauro (Michel Joelsas) já sabe que a profissão de arqueiro é a mais solitária dentro de campo. A responsabilidade é tremenda. Transcorre 1970, ano de Copa, e os pais de Mauro saem de férias. Esse é o eufemismo para dizer que a ditadura forçou o casal a se esconder. O garoto é deixado em São Paulo com o avô. O que os pais não esperavam é que o velho falecesse de repente. Mauro está prestes a experimentar um pouco da responsabilidade - e da solidão - de ser um goleiro nesse jogo da tenebrosa e incerta época da repressão.

O bairro é o Bom Retiro, centro de comércio têxtil paulistano de grande concentração judaica. Mauro acaba no apartamento de Shlomo (Germano Haiut) e o primeiro contato dos dois não é dos melhores - mesmo porque o garoto é um gói, um não-judeu. Ao choque cultural se soma o de gerações. E Mauro não está interessado em interagir. Passa os dias ao lado do telefone, aguardando um telefonema. Seu pai prometeu voltar a tempo do começo da Copa, e Mauro guarda aí a sua esperança.

A melancolia que se segue é comum aos filmes nacionais que tratam do período do regime, mas nenhum adere, como Hamburger, ao ponto-de-vista de uma criança. A referência mais evidente é o cinema argentino: Kamchatka (2002), em particular, também enxerga dilemas de adulto por olhos inocentes. Justiça seja feita, no material de imprensa do filme a inspiração portenha é admitida. Spielberg e Leone também são citados no release. Do primeiro Hamburger herda o bom trato com elenco-mirim, contato esse depurado pelos anos de direção do seriado Rá-Tim-Bum. Do segundo, tira menção a Era uma vez na América, as ótimas sequências da espiadela pelo buraco da parede.

O ano... não é feito só de colagens. Muita coisa saiu da própria vida dos realizadores. Hamburger viu o pai judeu e a mãe católica serem presos pela ditadura. E também atuou como goleiro no time da infância. Essas memórias afetivas respondem pelos melhores momentos do filme. São aqueles instantes de sensibilidade, de percepção do mundo, que só uma criança consegue ter - seja o jeito diferente com que olha a moça bonita do bairro, a curiosidade com que veste as luvas de couro do avô ou a alegria de completar o álbum de figurinhas.

A essa porção mais leve, de descoberta, se sobrepõe a mais grave, de contexto político. Há genialidade espontânea nas cenas que relembram o espectador do clima civil de insegurança, sem que isso seja verbalizado. Uma é quando Mauro sai à rua pela primeira vez com seus novos amigos, e é surpreendido pelo avanço do cachorro. Outra é quando ele comemora sozinho um gol - a câmera enfoca-o do lado de fora do apartamento, e com as janelas fechadas vemos Mauro gritar, mas não ouvimos nada.

Triste pra caramba. E faz mulher, homem, fã ou não de futebol, se comover.

Fonte: Omele

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Tiradentes: O mártir da independência no Cine Clube Foto

Hoje tem Cine Clube Foto com a exibição do clássico "Tiradentes: O mártir da independência". Vamos homenagear nosso heroi brasileiro, enforcado no dia 21 de abril de 1972. Mais do que um feriado, devemos lembrar da coragem de lutar que Joaquim José da Silva Xavier teve! Ele é reconhecido no Brasil como mártir da Inconfidência Mineira, patrono cívico do Brasil, patrono também das Polícias Militares dos Estados.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Um “Xingu” comportado demais

Embora belo e didático, filme não explora cosmologias e formas de viver-pensar indígenas — nem a sideração de “tornar-se outro”, presente em “Avatar”
Por Ivana Bentes*

Fui ver “Xingu”, na estréia no Roxy, e é muito fácil embarcar no filme: didático, belo, comportado. E fiquei pensando o que Herzog faria com essa história, com um potencial tão disruptivo e perturbador! Eu queria ver outro filme, e definitivamente “Xingu” não é sobre os “indios”, mas sobre a relação dos brancos com um mundo que precisam neutralizar e que é, de certa forma, insuportável.

O filme aplaca certa culpa e junto com ela neutraliza nosso devir-indio, com essa pragmática e bela defesa do “parque temático” do Xingu, que evitou a dizimação ainda mais atroz de indios brasileiros. Um gesto corajoso e político dos irmãos Villas Boas, a batalha pela demarcação de uma incrível reserva indígena que retardou e impediu parte do massacre. Mas criar uma “reserva” de humanidade já é matar. Mal “menor” diz o filme.

A história dos irmãos Villas Boas e dos sertanistas é tão incrível que, para mim (e espero que para outros), o filme é um disparador de mundos e imaginários. A cosmologia indígena, sua outra forma de viver/pensar são uma das mais radicais experiências de outras humanidades.

Tirar os indios das “reservas”, dos “museus”, da “antropologia”. O que pode ser um devir-índio? Poucos filmes fizeram isso. Aproveitei e revi “Cara de Indio” (primeira parte abaixo; sequência, aqui: 2 3 4), os comentários do antropólogo e pensador Eduardo Viveiros de Castro sobre algumas fotos clássicas dessa história de amor fatal entre nós e eles.

No final dos anos 80, viajei, acompanhando o trabalho de minha irmã, com uma expedição da Funai para duas tribos. Saímos de Benjamin Constant, na fronteira com a Colômbia, em direção ao Alto Solimões e ao encontro dos Marubos e Matis. Chegar numa tribo indígena, ainda com pouco contato na época, mesmo com todas as mediações de antropólogos, funcionários da Funai, médicos, guias, é algo impressionante e marcante, como se toda a história dos contatos e do infinito fascínio mútuo tornasse a acontecer pela primeira vez.

Os índios não são o “museu” da humanidade, são mundos potenciais e virtuais. Por isso, fiquei tão siderada com um filme como “Avatar”. Hollywood cravou direto, mesmo com todos os clichês, numa ficção-cientifica antropológica: ciber-indios, aos invés de desejar dizimar e matar, desejar intensamente tornar-se outro.

“Xingu”, às vésperas da Rio+20, também aponta para a outra “fantasia” desenvolvimentista de “integrar” os índios como sub-trabalhadores de um Brasil industrial. De Vargas a Belo Monte, passando pela “integração nacional” da ditadura. Este projeto fracassou, exterminou etnias inteiras, e ainda está ai!

O projeto indigenista dos irmãos Villas Boas, de “isolar”, de evitar o “mau encontro” com os brancos, de “retardar” a extinção de mundos inteiros é hoje uma referência internacional. Mas qual é, hoje, a potência dessa fabulação? Os filmes meramente “informativos” ou belos nos ajudarão a construir outra narrativa? Politica é sideração!

* Ivana Bentes é professora, pesquisadora e diretora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ. Este texto é rascunho para um artigo sobre o filme. Título e subtítulo são da redação de Outras Palavras.