Ciro Oiticica*
A obra de Daniel Ribeiro é um elogio ao contato humano. Ele
narra a história de dois irmãos, a criança Lucas e o jovem Danilo, e do
namorado do mais velho, Marcos, quando todos se vêem forçados a mudar de planos
devido à morte dos pais dos irmãos. Os namorados acabam tendo que abdicar de
uma viagem e da vida a dois em um novo apartamento para que Danilo possa cuidar
do irmão. Dessa adaptação, surgem novos relacionamentos entres os três
personagens, mostrando que o melhor é aceitar o correr da vida.
O título é um excelente ponto de partida para análise.
Expressão bem brasileira (tanto que a tradução para o inglês Me, you and him é
digna de “Sessão da tarde”), café-com-leite designa algo ou alguém cuja
inexperiência justifica, num jogo, não ser alcançado pelo rigor das regras.
Diego fala para seu irmão mais novo que ele não é mais café-com-leite após ele
passar um nível do videogame, indicando que ele está crescendo.
Mais do que essa simples referência, o filme procura mostrar
que todos podemos ser café-com-leite em relação às mudanças repentinas e à
imprevisibilidade da vida. Temos o privilégio de não poder controlar nosso
curso, de não sermos levados a sério, de não fazer da vida um livro de regras.
O significado de Café com leite vai além, sempre tipicamente
brasileiro. É da expressiva mistura do título que se constrói a narrativa.
Misturas não apenas entre os personagens, mas entre essas duas substâncias, o
café e o leite, que permeiam a subjetividade de qualquer pessoa: a pureza do
leite como memória doce de uma infância passada, quando um leve indício de
choro bastava para receber o carinho materno, e o café como o amargo do
envelhecer, a obrigação de ficar desperto e independente. Ao pedir que Danilo
prepare seu leite, Lucas busca o afeto, a atenção. Quando Lucas pergunta ao seu
irmão o porquê de chorar, a resposta é que “não é nada, é coisa de gente
velha”; é a dor que escorre por sua bochecha, são lágrimas de café. A obra de
Daniel Ribeiro demonstra de que forma a mistura permite neutralizar tanto o
sofrimento quanto a inexperiência levando à maturidade pela dissolução da dor
no contato humano.
Entre a infantilidade e o paternalismo, os personagens se
alternam, superando tanto o medo de crescer e de aceitar as mudanças, quanto o
de voltar a ser criança e pedir o carinho que precisam. A inversão das
situações, quando Diego procura o irmão mais novo pra dormir em sua cama e este
o consola, permitindo que ele durma de tênis, é uma amostrado poder lenitivo do
carinho e da companhia. Pela mudança, os sentimentos se equilibram, encontram
um ponto justo. Ao transformar, repousam, diria Heráclito. As próprias questões
abordadas pelos personagens, das existenciais às habituais, da saudade ao
videogame, acompanham a lógica (ou o caos) do fluxo.
Café com leite é a história de três vidas reunidas em torno
de uma frase. “Quando as coisas mudam, se acostumar é difícil, mas, depois de
um tempo, vai”. É o tempo de as coisas se ajustarem, encontrarem a mescla
certa. O tempo em que o derrame de café ainda invade a alvura do leite, que a
vida perturba nossa inocência de querer levá-la.
A abordagem do filme quanto à questão homossexual é
brilhante, sem exagero. Um ditado afirma que a melhor forma de demolir um
preconceito é pelo desprezo. Os temas são tratados com naturalidade. A espetacularização
que se fez em torno de O segredo de Brokeback Mountain leva a pensar se o filme
teria esse sucesso todo não fosse a temática gay. Da mesma forma, as novelas ao
mostrar casais totalmente púdicos, sem espontaneidade, incomodam profundamente,
parecem reforçar a intolerância. Café com leite em nenhum momento se aproveita
da condição do casal ou o hiperboliza. O anseio hiper-real de defesa, a
encenação afetada ou espetacular acaba por justificar e fortalecer o
preconceito. Os opostos se legitimam. Eliminando um, é provável que o outro
desapareça. Por isso interrompo minha defesa: não irei mais trair o ditado.
Foi um deleite assistir a um filme tão doce, doçura que a
lembrança do batente, às seis da manhã do dia seguinte (regado com muito café
pra ficar esperto), reenquadrou na realidade. Mas nem isso desanima, já que a
felicidade nada mais é que a complacência da solidão (e vice-versa).
Texto originalmente publicado em CriticaCurta Cinema
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